MPF em Erechim contesta sentença judicial que anula a portaria que criou a Terra Indígena de Mato Preto

O Ministério Público Federal em Erechim apresentou recurso de apelação contra a sentença proferida pelo Juízo da Subseção Judiciária Federal de Erechim (nos autos da ação ordinária 5004427-72.2012.404.7117, ajuizada por agricultores contra a Funai e a União), a qual, em 09/09/2015, decretou a nulidade da Portaria n° 2.222, de 21 de setembro de 2012, do Ministro de Estado da Justiça, que declarara como de ocupação tradicional indígena Guarani a área com superfície aproximada de 4.230 hectares denominada “Terra Indígena de Mato Preto”.
A área do Mato Preto, que integra parcela dos territórios dos municípios
de Getúlio Vargas, Erebango e Erechim está localizada nas
proximidades da Reserva Indígena Ventarra.
Imagem ilustrativa.
 
O procurador da República em Erechim, Carlos Eduardo Raddatz Cruz, requereu a anulação e
cassação da sentença, por violação ao direito de consulta e de participação da comunidade indígena.
A sentença, muito embora tenha considerado comprovada a ocupação tradicional Guarani na região de Mato Preto até meados de 1930 e deixado expresso o reconhecimento do vínculo de pertencimento dos indígenas com aquele território, considerou no caso concreto, inexistir, ao tempo da promulgação da Constituição Federal de 1988, prova de ocupação no local, tampouco prova da persistência de disputa pela área entre os índios e não-índios que fosse materializada por circunstâncias de fato ou por processos administrativos/judiciais, aplicando, assim, a tese do "fato indígena" no marco temporal da Constituição Federal de 1988, concebida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, em 2009.
Raddatz deseja que seja determinada a reabertura da instrução probatória na qual deve ser oportunizada a produção de prova testemunhal e pericial antropológica, especificamente para o fim de aferir as causas que levaram a situação de ausência de efetiva ocupação territorial na data da promulgação da Constituição pelos Guarani de Mato Preto.
O procurador argumentou na apelação que o MPF pretendia levar até a 1ª Vara Federal de Erechim “os indígenas da comunidade de Mato Preto, ocupantes de postos de comando dentro da aldeia e que representam a memória viva do grupo”, para que seus depoimentos em viva voz “contribuíssem na formação do convencimento do Juízo a respeito de todo o contexto fático que subjaz à presente demanda” porque, conforme o MPF também já havia salientado ao formular esse pedido à Justiça, que foi negado, “o vínculo existente entre o indígena e sua terra tradicional não comportaria redução àquilo que é impresso no papel, porquanto a expressão cultural indígena transborda a frieza e os limites de qualquer prova documental, a única existente nos autos”.

Relatório Figueiredo
Raddatz alega que, ao negar o pedido do MPF e não ouvir o testemunho dos índios, a Justiça ignorou a realidade vivida pelos Guarani de Mato Preto no período que antecedeu ao ano de 1988, quando os órgãos de proteção aos índios, supostamente criados para defender seus direitos, ficaram, por longo período na história, subordinados às políticas governamentais e outros interesses perversos que não a proteção indígena, especialmente de 1946 e 1988, conforme apontou a Comissão Nacional da Verdade.
“O contexto estrutural foi propício para que ocorresse a desenfreada apropriação de terras indígenas e seus recursos, a corrupção de servidores e a violência extrema contra índios”, ressalta o texto da apelação. O Relatório Figueiredo, escrito pelo procurador federal Jader Figueiredo Correia nos anos 60, diante de denúncias na gestão do Serviço de Proteção ao Índio (o SPI, o antecessor da Funai) é citado por Raddatz: “O índio, razão de ser do SPI, tornou-se vítima de verdadeiros celerados, que lhe impuseram um regime de escravidão e lhe negaram um mínimo de condições de vida compatível com a dignidade da pessoa humana”, lê-se no relatório de Figueiredo que escreveu ser “espantoso que existe na estrutura administrativa do País repartição que haja descido a tão baixos padrões de decência”.
A “doação criminosa de terras”, “adulteração de documentos oficiais”, “assassinatos de índios (individuais e coletivos)” e “trabalho escravo” são os crimes cometidos pelo SPI transcritos no relatório, citado por Raddatz. O mesmo relatório informa que os índios que viviam nos postos indígenas de Cacique Doble – para onde os Guarani de Mato Preto foram após serem expulsos de suas terras na década de 1930 – eram submetidos a tratos desumanos, como espancamentos e trabalhos forçados.

A apelação cita ainda um trecho de um manifesto entregue ao MPF em Erechim em setembro passado pelos próprios índios, onde eles afirmam que os índios que se encontram em Mato Preto derivam de famílias que saíram das Terras Indígenas de Cacique Doble e Nonoai, para reaver as terras onde seus avós viveram. Na mesma carta, os Guarani ressaltam que durante os anos 70 “mesmo sabendo que tinha um território que poderiam reivindicar para a comunidade, [as lideranças indígenas] não podiam sair das terras em busca dos direitos e que se saíssem seriam presos e torturados”.
Fonte: Jornal Boa Vista

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